terça-feira, 19 de março de 2024

Proposta legislativa pró liberdade de opinião




 Não obstante nossa “total” liberdade de opinião, na imprensa e na internet, essa liberdade é teórica, fictícia — mesmo quando exercida sem abuso. Isso ocorre por causa de uma ameaçadora possível ação de “indenização por dano moral”, movida por quem errou, sabe que errou, continua errando mas pretende silenciar seus críticos — mesmo quando mentalmente honestos —, “usando” a Justiça para seu astuto objetivo. 

Espero que as entidades encarregadas da defesa da liberdade de expressão leiam este despretensioso texto, redigido em estilo coloquial, compreendendo que com a atual legislação — em um país atolado em milhões de processos demorados —, o receio de uma arrasadora condenação por “dano moral” paralisará a busca da verdade ou a tornará imensamente arriscada.

Friso que este artigo não ataca o demandante bem intencionado que realmente foi caluniado, ou difamado. Visa apenas os que utilizam o “medo financeiro” como forma de manter escondidos seus malfeitos.

Em toda ação judicial, deve estar presente a máxima genial de Voltaire que gosto de invocar: “A vantagem deve ser igual ao perigo”. Hoje, na ação por dano moral movida pelo poderoso contra o remediado — por exemplo um jornalista —, este pode perder todo o seu patrimônio, enquanto o risco patrimonial do poderoso é praticamente nenhum, “coisinhas”. Isso leva o poderoso a abusar de seu poder de intimidação econômica, forçando o jornalista a calar a boca porque, se não o fizer, poderá perder o pouco que tem.

O presente artigo sugere uma curta modificação legislativa, no processo civil, que funcionará como desestímulo para tais ações quando visam apenas intimidar o réu — jornal, jornalista, repórter, revista, rádio, televisão, blogs e opinião desfavorável de qualquer modo publicada. Ao mesmo tempo, essa lei, aqui sugerida, teria o bom efeito colateral de desestimular, na mídia, críticas desnecessariamente ácidas — até com obscenidades, dando uma péssima imagem do país, — com ofensas pessoais que aproveitam a oportunidade da crítica, talvez justa, para insultar e desmoralizar uma pessoa física ou jurídica. A tentação do abuso, tanto de um lado quanto do outro, é uma constante na história do Direito. 

O sofrimento apenas moral varia muito, conforme  a sensibilidade de cada um. Tais ações podem demorar vários anos — quanto mais, melhor para o autor, em certos casos, porque sua verdadeira intenção é calar o réu, que precisa ser silenciado “a qualquer custo!”. Um custo financeiro previsível para o autor da ação, mas imprevisível para o réu, pois não há uma tabela legal impondo limites máximos para indenizações por dano moral. A quantia em jogo é uma caixa misteriosa.

 Penso, até, que a legislação poderia fixar o limite máximo da condenação do réu nessas ações, mas com um parágrafo, de exceção, permitindo condenação indenizatória superior ao teto, se confirmado, nos autos, que o autor agiu com indiscutível má-fé, na certeza de que poderia insultar à vontade porque o juiz estaria impossibilitado de aplicar uma condenação alta, exemplar, acima da tabela. 

A propósito, diz a história, ou lenda, que na Roma antiga uma lei previa que um tapa da cara tinha como castigo uma pequena indenização de xis moedas de cobre, o sestércio. Apoiado nessa legislação, um ousado gaiato rico saía na rua, acompanhado de um escravo forte carregando um saco de moedas. Quando o excêntrico topava com alguma pessoa cuja cara não lhe agradava o maldoso a esbofeteava e seu escravo pagava, no ato, à própria vítima, a multa prevista em lei, que era modesta. Daí a minha sugestão de que se houver uma eventual fixação de teto para indenização do dano moral que a lei preveja também uma indenização alta, caso bem comprovado o permissivo abuso do poder econômico. 

Em algumas ações de indenização por dano moral, paradoxalmente — porque nas ações judiciais, é o autor quem tem pressa no término da demanda —, quanto mais tempo ela demorar, melhor para o criticado, autor, porque sua verdadeira intenção não é obter o dinheiro da indenização mas incutir medo paralisante — na alma e/ou no “bolso” — de quem apontou suas falhas. O réu sabe que o tema “dano moral” é, por natureza subjetivo, “escorregadio”, e os juízes variam muito na quantificação da dor moral. A sorte do réu vai depender, em muito, da distribuição do processo, ou do recurso.

É por causa da desigualdade de forças financeiras entre autor e réu que muitas investigações importantes, iniciadas por órgão de imprensa, somem do noticiário. A investigação, a “busca da verdade” contra um poderoso pode significar um pesadelo capaz de arruinar uma vida ou uma empresa.

Um “detalhezinho” jurídico-processual que facilita a intimidação de jornalistas e críticos em geral — mesmo quando mentalmente honestos — está na permissão de o Autor da ação dar à causa um valor mínimo, “simbólico”, como, por exemplo, R$1.000,00, frisando o Autor, na petição inicial, que deixa “a critério de Vossa Excelência” (o juiz cível) “fixar o valor da indenização”.  Esse “valor simbólico” representa uma enorme vantagem psicológica para o autor da ação, o criticado — quando mentalmente desonesto —, porque caso ele perca a demanda — algo bem previsível para ele —, sua condenação pela “sucumbência” (pagar honorários à parte contrária) será mínima, eis que a condenação dele não poderá exceder 20% do valor da causa. 20% de R$1.000,00 é R$200,00. Essa ridícula “condenação”, de duzentos reais em honorários, estimula sua prepotência, o uso “baratinho” da Justiça para silenciar, durante  muitos anos de demanda, quem revelou suas faltas.

Ocorre, no entanto, que como o valor da causa, dada pelo autor da ação, foi “simbólico”, esse baixo valor não proíbe o juiz — segundo a jurisprudência — de condenar o réu (o jornalista, p. ex.) a pagar uma altíssima indenização, sem valor previsível, caso entenda que a crítica ofendeu moralmente o autor. Enfim, o réu, mesmo ciente de que não fez nada errado, vê-se obrigado, por mera prudência, a sempre contestar a ação, mesmo com baixo “valor da causa”, contratando advogado e sofrendo um longo desgaste emocional. Nenhum jornalista previdente, p. ex., se absterá de contestar uma ação dessa natureza presumindo que, se condenado, a condenação será pequena. O juiz pode pensar diferente. Se o autor não contestar a ação será revel, “confesso”. Perde a ação por omissão.

É, portanto, de urgente necessidade moral e jurídica — tendo em vista que tais ações podem estender-se por muitos anos — que o legislador conceda ao réu — um jornalista, por exemplo — o direito de, quando citado em ação cobrando “danos morais’, apresentar “reconvenção”, pedindo contra o autor uma indenização, de igual valor ao pretendido pelo autor, também por dano moral, só pelo fato de estar sendo processado injustamente. Na sentença, o juiz decidirá, com base na prova, a boa e a má intenção do criticado e do crítico. Não tem cabimento, é injusto exigir que o jornalista seja obrigado a ser “fritado” vários anos, apenas se defendendo, aguardando o remoto trânsito em julgado de sua inocência para, só depois, poder processar quem o processou injustamente. Propõe-se aqui, em vez de duas ações, em sucessão, apenas uma, simultânea. 

Alguém poderá alegar que a lei agora proposta é desnecessária porque se o autor perder sua ação poderá ser condenado por “litigância de má-fé. Ocorre que os que frequentam o fórum sabem que, nessas ações, a condenação por “litigância de má-fé” do autor é raríssimamente aplicada tendo em vista que a sensibilidade moral é muito variável na sua ocorrência e medição. 

Se, com a legislação atual, um juiz admitir — por economia processual —, a utilização da reconvenção nessas ações de indenização por dano moral, essa decisão ensejará infindáveis e sutis discussões acadêmicas e judiciais, com o argumento de que a “mera” condição de Réu em ações desse tipo não representa um “sofrimento moral” já ocorrido, passado. “Seria necessário” — dirão os críticos da ideia — “um prolongado tempo de sofrimento do jornalista, após sua citação, para justificar o pedido do Réu”. Este teria — “tecnicamente” — que sofrer longamente para, só depois, muitos anos depois, transitada em julgado sua absolvição, ter o direito de pretender cobrar do Autor a mesma quantia pretendida pelo Autor que o intimidou financeiramente por longo período.

Ponha-se o leitor na pele de um jornalista que foi citado judicialmente para pagar, digamos, uma indenização de cinco milhões de reais, porque não comprovou uma falcatrua — ouvida de fonte confiável, em tese crível. Essa ameaça tira-lhe todo o estímulo para o jornalismo investigativo. E pode ocorrer que, devido a globalização, a ação por danos morais seja processada em país estrangeiro propenso a indenizações milionárias.

O jornalista Paulo Francis, por exemplo, na década de 1990, foi condenado, pela justiça americana, a pagar uma indenização de cem milhões de dólares por haver mencionado — em entrevista, divulgada também nos EUA —, que a diretoria de uma empresa estatal brasileira, teria desviado altas somas da empresa para contas particulares dos diretores, em banco suíço. Como Francis não comprovou em juízo esse desvio — o sigilo bancário era inviolável —, o jornalista foi condenado a pagar os cem milhões. Ele justificava-se, dizendo que ao fazer suas denúncias pensava que o governo brasileiro iria investigar o fato, supostamente ilícito, mas a investigação não ocorreu. Pelo que presumia a mídia, nos anos 1990, o enfarte do jornalista foi apressado com tal condenação.

 Não sei se Paulo Francis tinha, ou não, razão no que disse, mas de qualquer forma, é impossível escapar da insônia — do enfarte, ou do mesmo do câncer induzido por angústia — com tal espada sobre a nuca. Não tem cabimento impor tal sofrimento moral, por muitos anos, a qualquer réu que vive da escrita, para só depois de transitar em julgado sua absolvição ter ele, réu, o direito legal de requerer uma indenização por dano moral contra alguém que o processou sem razão, conforme reconhecida pela justiça. O dano moral, o sofrimento psíquico, começa a existir a partir do momento em que o jornalista é citado e prolonga-se enquanto o processo caminha lentamente, como uma máquina de moer neurônios, no processo de milhões em que só sofre o réu.

Por que não, repita-se, decidir as culpas recíprocas no mesmo processo? Se ficar provado, no conjunto da prova, que o jornalista abusou, que pague pelo abuso. Se ficou provado que não abusou, que receba do “ofendido” a mesma quantia que este lhe cobra. Justo, não? Quem ganhar, leva tudo. Se ambos erraram e também acertaram, que a justiça fixe a divisão da quantia em disputa, na medida e proporção do abuso de cada um. E tem mais: se o conflito em exame exigir dois processos, um após o outro, pode acontecer que a prova apresentada no segundo processo seja diferente da prova produzida no primeiro processo, acarretando uma contradição da justiça, abalando a confiança da comunidade.  

Há mais a ser modificado com essa futura lei. Ela exigirá que em toda ação de indenização por dano moral — seja qual for o motivo — o Autor será obrigado a mencionar expressamente, na petição inicial, o valor que pretende receber do Réu, não podendo deixar isso “o critério do juiz”, na sentença. Nada mais racional que cada ofendido quantifique, ele mesmo, monetariamente, o grau de seu sofrimento psíquico. Só ele é quem melhor pode revelar o grau de seu sentimento. Que assuma sua responsabilidade, e o risco processual da sucumbência. 

A menção obrigatória desse “quantum” pelo autor teria a vantagem de permitir a qualquer réu, quando demandado, abster-se de contestar a ação, quando o valor mencionado for mínimo, não justificando maiores gastos com sua defesa judicial. Como está hoje a legislação — ensejando ao Autor não quantificar o valor que pretende cobrar —, todo Réu sente-se forçado, por prudência, a contestar qualquer ação de danos morais, mesmo que a considere risível.

A lei a ser proposta também deveria ter a virtude “extra” de forçar maior urbanidade, ou compostura, nas críticas, impressas ou orais, antes e depois de proposta a ação, contra pessoas ou instituições. Isso porque, se os fatos criticados forem verdadeiros, mas o crítico aproveitou a oportunidade para enxovalhar, mesmo com algum  “brilhantismo”, a reputação do criticado e de sua família — muito além da intenção de apenas criticar um ato —, ele verá reduzida sua indenização.  Não pela sua crítica — na essência verdadeira —, mas pela forma abusiva, insultuosa, ou obscena, de se expressar.

Essa possível lei teria também um “efeito colateral” civilizador, educador. O direito de livre crítica, reconhecido mundialmente, foi concebido “para o bem”. Não como maldosa oportunidade para ofensas, verbais ou escritas, que estimulam imitadores, do pior nível imaginável, transformando a mídia em um bordel vocal, com insultos de baixíssimo calão, que estimularão novas ações judiciais, ou vinganças à bala. Quem insultar desnecessariamente a parte contrária, mesmo com o direito de receber uma indenização, ficará sabendo que o seu montante indenizatório será diminuído, na decisão, na proporção do exagero no insulto desnecessário. Analogamente, se a lei processual permite que o juiz, nas ações cíveis, pode mandar riscar, nos autos, os insultos incompatíveis com o decoro judicial, poderá também punir financeiramente os palavrões e ofensas equivalentes. Será útil, para a boa imagem do país no exterior, que políticos, economistas e “filósofos” de boca suja policiem seu linguajar, mesmo que façam isso só pensando no dinheiro, não por virtude.

Encerro, aqui, minha sugestão. Observo ao leitor que não escrevo para juristas, mas para pessoas em geral. Daí meu estilo coloquial.  Vou encaminhar esta proposta às entidades de defesa da liberdade de imprensa, as maiores interessadas no direito de informar o que ocorre no município, no estado, no país e no planeta. 

Desnecessário, de minha parte, apresentar agora um esboço de projeto de lei a respeito, pois há advogados e juristas do mais alto nível que podem fazer isso melhor do que eu, afastado que estou, há anos, da atividade forense.

FIM

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
oripec@terra.com.br

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sábado, 9 de março de 2024

Observações complementares sobre o livro “REFLEXÕES JURÍDICAS II”, do advogado Elias Farah.


Cerca de um ano atrás fui agradavelmente surpreendido  pelo Dr. Elias Farah com o convite para que eu redigisse o prefácio de sua mais recente obra — acima mencionada. Honrado com sua lembrança, escrevi prontamente o prefácio, que consta no livro impresso.

A justificação da minha surpresa com o convite, é porque nunca me considerei, a rigor, um jurista. Embora “viciado” pela palavra impressa e com mais de 6.000 livros comprados, aguardando leitura, meu preponderante interesse intelectual nunca foi centrado no Direito. Essa orgulhosa e bela Ciência tem seu ponto fraco no momento de sua aplicação ao caso concreto. A excessiva abstração e extensão das constituições, nos variados países, possibilita decepcionantes distorções   interpretativas, via infindáveis recursos e até mesmo habeas corpus concedidos de ofício “anulando tudo”, com a benevolência ou severidade judicial variando conforme a tendência política de quem julga ou está sendo julgado.

 Napoleão Bonaparte, militar e político inteligentíssimo, chegou a dizer, em momento de desabafo, ou blague, que “as constituições deveriam ser curtas e vagas”. Quanto mais extensas, palavrosas, maior a possibilidade de infindáveis conflitos interpretativos, tudo dependendo do caráter do julgador, da sua honestidade intelectual. Resumindo: o Direito, como “ciência” merece total respeito, mas seu “aplicador” nem sempre está isento de preconceitos, simpatias ou antipatias — pessoais ou políticas. Mesmo em países francamente ditatoriais, com “ditadura do proletariado”, ou de extrema direita, com inspiração nazista, existem, “tribunais’, meros prédios, com magistrados nomeados, controlados e intimidados pelo ditador, interessado em manter uma aparência de legalidade. Stalin não fechava seus tribunais, só trocava os ocupantes.

Pedindo desculpa pela digressão, voltemos ao que interessa: explicar porque volto a falar sobre o Dr. Elias Farah e, seu livro “Reflexões Jurídicas II” e porque, no referido prefácio, usei algumas linhas elogiando a modéstia pessoal do prefaciado.

Por que mencionei, várias vezes, que meu amigo Elias Farah é um homem modesto? Essa bela e nobre qualidade humana — cada vez mais rara com a globalização —, a modéstia é um traço inato do caráter, nada tendo a ver com a abundância, ou escassez, ou riqueza intrínseca de sua obra.

O cidadão pode ser até um premiado Nobel, sem ficar proclamando isso em toda parte, promovendo-se, procurando jornalistas ou sites para entrevistá-lo. Eu poderia citar aqui dezenas de grandes cientistas premiados pela Fundação Nobel de  quem o leitor nunca ouviu falar. Há bilionários discretos que não gostam de exibir sua riqueza. Vez por outra fico sabendo, apesar de ler jornal diariamente, há décadas, que um determinado cidadão — para mim um completo desconhecido — de um pequeno país é um dos homens mais ricos do planeta. Grandes pintores do passado, escritores e cientistas foram modestos, as vezes só reconhecidos e valorizados depois de falecidos. Porém na música, nos palcos, no cinema, no futebol e nos demais esportes de massa um comportamento modesto é hoje quase impossível porque seu ofício, seu trabalho é assistido ao vivo, nos estádios, na televisão, em filmes e na mídia em geral. Assim mesmo, há diferenças entre tais profissionais. A maioria procura os holofotes. Uma minoria prefere fugir deles, preservando sua vida familiar. Nos dias atuais, se o artista for reservado demais seu empresário o criticará porque seu lucro — do empresário e do artista —, depende da extroversão, do “grito”, do “aparecer”. Quase todos querem ou precisam ter seus cinco minutos de fama. Se essa exposição torna-se incômoda, passam a usar óculos escuros.

Na advocacia e na medicina a vontade de aparecer sofre restrições porque há controle externo e legislação proibindo a autopromoção. Em síntese: afirmar que um determinado profissional é um homem modesto não significa que sua obra também o seja. 

É o caso do advogado Elias Farah, autor de 8 livros, volumosos e substanciais mas no fundo sintéticos  porque o Dr. Farah sempre foi detalhista e conciso, pesando cada palavra. Para ajudar os leitores que desconhecem os fundamentos legais de determinados problemas ele menciona a lei, ou decreto, sua data, artigo, parágrafo, alínea, jurisprudência e também sua própria opinião, ou interpretação. Quando tem, vez por outra, alguma dúvida sobre o mérito de um assunto controverso ele diz isso expressamente.

Uma singularidade minha mas que não deve ser apenas minha: quando topo com algum profissional — qualquer profissional, até mesmo braçal—, que realmente conhece os segredos da sua atividade mas que, por modéstia, esconde sua superior qualificação, sou o primeiro a recomendá-lo, promovê-lo. Faço isso com satisfação. Por que só elogiar depois de morto?

 A modéstia pessoal é uma virtude, não uma falha a ser escondida. Não confundir, por favor, modéstia com moléstia. Principalmente quando o profissional revela uma inteligência e um senso de responsabilidade bem acima da média. Frequentemente o modesto ganha menos que seus colegas mais atrevidos, não pelo próprio trabalho, mas pela ousadia no cobrar, ousadia que falta no “modesto”. Alguém já observou que pessoas bondosas, generosas, não são bons comerciantes. Na advocacia também isso pode ocorrer, com um grande advogado criminal trabalhando de graça, para defender um injustiçado. Tales Castelo Branco é um deles. Até políticos podem ser modestos, usando pouco os microfones. Ângela Merkel, por exemplo, tem essa característica pessoal. Não procura holofotes, os holofotes é que a procuram. E ela não pode fugir das entrevistas, no cargo que ocupa.

Penso que já escrevi, até demais, esclarecendo que a modéstia pessoal é uma bela qualidade e pode existir em um Papa, um prêmio Nobel, um bilionário e até em um político, excepcionalmente. O cidadão pode ter obra extensa e de altíssima qualidade e ser de temperamento modesto, reservado, pouco falando dele mesmo quando isso não é necessário.

Voltando ao livro “Reflexões Jurídicas II”, explico qual a utilidade da sua leitura. Sendo uma coletânea de ensaios, a maioria de assuntos jurídicos, alunos do curso de Direito teriam proveito quando pretendem escrever tese de grande relevância no momento. Escolhido o assunto, lendo o livro do Farah o aluno fica sabendo porque o tema, aparentemente vago, é tão importante, no momento, e qual a legislação sobre ele.

Mesmo os jornalistas podem tirar proveito da leitura dos ensaios. De modo geral os jornalistas conhecem os assuntos sob o enfoque político, não jurídico. Não têm tempo para longas pesquisas. Caso decidam investigar a base legal do problema, encontrariam nos ensaios do Farah os melhores argumentos, já meditados, resumidos e indicando as fontes legislativas.

Quem quiser saber o essencial sobre drogas, entorpecentes e variados tóxicos, leia o que escreveu o Farah no referido livro. Aprendi muito com tal leitura.  Foi como ler um livro inteiro, sintetizado, abordando o tema sob o ângulo médico, jurídico, policial, social e moral.

Termino por aqui, repetindo que o prefaciado, mesmo tendo escrito centenas de artigos muito bem argumentados é um homem, no fundo, modesto. Que continue assim.

Perdão pela extensão. A falha é minha, não do homenageado.


Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado
oripec@terra.com.br

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sábado, 24 de fevereiro de 2024

“Criônica”. Um livro original

 


“Criônica”. Um livro original 

Em 2005 publiquei um romance que batizei com o título acima, um aportuguesamento da palavra inglesa “cryonics”, inventada por norte-americanos. Ela significa a técnica de congelar seres humanos imediatamente após a morte — antes que ocorram danos cerebrais irreversíveis —, com a esperança de que possam ser descongelados, alguns anos depois, quando as suas doenças, hoje incuráveis, já não mais o forem. A presunção, inegável, é a de que a medicina do futuro será muito mais avançada do que a do presente. Técnica, hoje, incipiente, tateando, mas quando der certo iniciará uma nova era. Não existe nada mais revolucionário”, embora sem data previsível para o sucesso.

Não confundir, por favor, a palavra “cryonics” com “cryogenics”(criogenia), ramo mais abrangente da física que estuda a produção de temperaturas extremamente  baixas e seus efeitos na  matéria em geral,  inclusive nos seres vivos.

Reiterando, “cryonics” refere-se unicamente ao congelamento de pessoas, com o fim de “acordá-las” anos depois.

— “Como?! Ressuscitá-las?!” — perguntam-se as pessoas mais apegadas ao pensamento religioso. — “E o que acontece com a alma? Permanecerá congelada no “cadáver” ou fica passeando até ser chamada de volta”? Caçoadas não faltam. Por enquanto com alguma razão, mas o tempo mostrará que o futuro nos surpreenderá. Obstáculos mais difíceis já foram superados pelo engenho humano.

O congelamento seria uma espécie de “pause” do filme gravado em DVD. Querendo continuar a exibição basta apertar o botão do controle remoto. O filme não se “deteriora” com a pausa. Segundo li, os próprios átomos — normalmente tão irrequietos na temperatura normal, filmados no microscópio eletrônico —, ficam quase imobilizados quando a temperatura está em -196 C. Essa é a temperatura do nitrogênio líquido em que estão encerrados os “mortos”, ou “pacientes”, na terminologia dos entusiastas da criônica. Uma espécie de “coma” gelado.

O interesse prático por tão ambiciosa façanha, “ressuscitar” uma pessoa “morta” — assim considerada, legalmente, hoje, porque o coração e o pulmão pararam de funcionar — obviamente surgiu em seres humanos que ainda esperavam viver muitos anos, mas foram informadas, por médicos sinceros e competentes, que sua doença é mortal, incurável e com desfecho próximo.

Mesmo o paciente sabendo que os laboratórios esforçam-se para a cura de sua doença, o médico honesto e realista informa ao angustiado cliente que, no seu caso, mesmo surgindo, eventualmente, a notícia de uma grande descoberta científica, não haverá tempo suficiente para a composição do remédio, rigorosos testes de eficácia e a autorização para sua comercialização. Esperar por um “milagre científico” e farmacêutico será morte garantida.

Quando a situação é essa, o paciente, imaginativo e apegado à vida, pensa da seguinte forma: — “Já que vou morrer daqui a algumas semanas, ou meses, por que não arriscar em me congelar a -196° C e esperar por tempos melhores, quando minha moléstia for equivalente a um resfriado? Não vou ser morto antes do tempo porque isso seria homicídio. No momento que eu naturalmente morrer, em vez de meu corpo iniciar o processo de decomposição, a técnica iniciará um “tratamento” impeditivo do apodrecimento. Só quando meu coração espontaneamente parar de bater e eu estiver inconsciente é que os paramédicos de prontidão extrairão, com rapidez, meu sangue, substituindo-o por um líquido — uma espécie de glicerina —, que só será substituído por sangue verdadeiro quando eu for descongelado”.

E o “condenado” prossegue pensando: — “Quando eu sair do “coma gelado”, daqui a alguns anos, receberei uma transfusão de sangue; meu coração será estimulado, eletricamente, a pulsar, o oxigênio invadirá meus pulmões, e eu poderei, quem sabe, voltar a viver. Se o processo, não der certo, eu continuarei morto, como o restante da humanidade, totalmente inconsciente do fracasso. Apenas o velho e conhecido sono eterno. Essa conjetura é mais reconfortante que saber — com absoluta certeza —, que daqui a alguns dias, ou meses, morrerei mesmo, sendo enterrado ou reduzido a cinzas. Congelando, terei alguma chance, acima de zero por cento, de “voltar” —, porque a ciência e a tecnologia não param de evoluir. E o que tenho a perder congelando-me? Apenas o dinheiro que dei para a empresa que me manteve mergulhado em nitrogênio líquido. Qual a utilidade do dinheiro para qualquer morto?

No meu romance “Criônica” — que não é, de forma alguma, um livro de ficção científica —, eu coloquei dois personagens: um arguto ex-banqueiro brasileiro, condenado por homicídio da esposa, portador de câncer incurável, e seu irmão, um desembargador aposentado, mais ajuizado, que tenta convencer o doente a não entrar numa provável arapuca comercial. Considera impossível essa história de voltar a viver após anos ou décadas, mas no decorrer das conversas com o irmão começa a admitir alguma possibilidade. É emocionalmente estimulado, nessa tolerância científica, porque vê nela uma solução para um segredo sentimental que nunca revelou a qualquer pessoa.

O romance desenvolve-se no dia-a-dia da espera da morte, o ex-banqueiro contando ao irmão o desenrolar de sua vida, a lembrança das mulheres que “conheceu”, no sentido bíblico ou platônico — o financista foi um mulherengo que realmente amava, embora provisoriamente, cada uma delas — registrando os diálogos em gravador. Faz isso porque espera que o irmão jurista, aproveite esse material escrevendo um livro que ele, o doente, continuará escrevendo após seu retorno à vida. No “volume 2” poderá contar com mais detalhes, o que viu, pessoalmente, no fim do tal “túnel de luz”, assim descrito por pessoas que sofreram a experiência de “quase morte”, ou morreram mesmo durante alguns minutos, sendo ressuscitadas por choques no coração.

Para escrever esse romance perdi um bocado de tempo, lendo os tópicos de ciência e filosofia relacionáveis com tão peculiar situação. Aproveitei a oportunidade para trazer à baila, nos diálogos, a experiência profissional do irmão aposentado, criando um enredo paralelo ao aspecto científico, assim evitando a monotonia de conversas girando em torno de um único assunto técnico.

Nossa vida é breve.  De modo geral, os primeiros vinte anos servem apenas para o desmame, a alfabetização e o conhecimento elementar do mundo que nos cerca. Depois dos vinte vem a fase da luta pela vida, a disputa sexual, a concorrência, a luta pelo status. Dos quarenta aos sessenta a luta do “camelo” apenas útil continua. Depois dos sessenta, o “gás” vai sumindo. De modo geral, nessa fase, a maioria, olhando para trás, não se considera “vencedora”. O resumo disso é: “Nasceu, mamou, comeu, bebeu, fornicou, trabalhou — ou não teve sempre essa oportunidade — e o foco da vida passou a ser o combate contra o colesterol, o diabetes ou a fome, a pressão alta e preocupações assemelhadas.

Há, porém, alguns poucos milhares de indivíduos — entre os sete bilhões de habitantes do planeta — realmente interessados em conhecer verdadeiramente nosso habitat, nós mesmos e o cosmo fascinante e misterioso. São pessoas, geralmente inteligentes — ou pelo menos invulgarmente curiosas —, que anseiam por formar uma síntese do mundo conhecido e avançar no desconhecido, procurando explicação para todos os fenômenos.

Para aqueles realmente interessados em penetrar a fundo na compreensão dos seres vivos, e não vivos, o tempo de vida plenamente lúcida é decepcionante. É um desperdício que pessoas como um Einstein, por exemplo, e centenas de outros cientistas — notáveis na inteligência e no caráter — disponham de tão pouco tempo útil. Daí o interesse em criar uma técnica adequada de congelamento que permita a cientistas e pensadores, especialmente engenhosos, fazerem uma “pause” nas suas vidas, quando o cérebro começa a declinar seriamente, sabendo que, depois de um “sono” de dez ou vinte anos, poderão “acordar”, reparar seus cérebros, acrescentar novos neurônios utilizando células-tronco, e prosseguir com suas pesquisas.

Além do mais, no decorrer das futuras décadas, e séculos, o homem “precisará” enviar astronautas para a exploração espacial muito além da lua. Tais viagens consumirão anos de vida. Com a técnica do congelamento, até lá dominada, o astronauta poderá “dormir” por dez, vinte, trinta ou cinquenta nos, voando talvez com velocidade próxima à da luz, sem envelhecimento, só “despertando” quando o computador da nave espacial disser que é hora de “acordar”.

Penso que está justificada minha defesa esperançosa no conteúdo programático do livro referido. Quero incentivar as pessoas mais inteligentes a pensar no tema.

 

Desembargador aposentado
e.mail - oripec@terra.com.br 

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terça-feira, 1 de agosto de 2023

Foto divulgação

CRIMES E SOBERANIA

            Já não me acanho — tenho precursores ilustríssimos, Kant inclusive — em insistir que as nações precisam, cada vez mais, renunciar largas porções de sua soberania, em favor de uma federação democrática mundial, para que o mundo seja menos caótico, injusto e auto-destrutivo. 

Não se trata de “mero” idealismo; propensão à utopia; otimismo fantasioso (estilo J. J. Rousseau, de que o homem nasce essencialmente bom, sendo pervertido pela sociedade); altruísmo e coisas do gênero. O homem é bom e mau, em variadas proporções, conforme sua carga genética, educação — formal e informal —, o coquetel de pancadas e afagos recebidos desde pequeno e o cálculo das vantagens ou riscos legais e sociais que cercam sua atuação. Se é vantajoso ser “bom” — vantagem aqui ou no além —, ele o é, embora no fundo não o seja. Dança conforme a música. Mas deixemos de generalizações, que o leitor não tem tempo a perder. 

Quando estudante de Direito já me impressionava o fato de um cidadão estrangeiro, condenado pela justiça de seu país, correr para o Brasil, fecundar brasileira, gerar um filho e com isso livrar-se da extradição para cumprimento da pena. Parecia-me o “habeas corpus” preventivo mais fácil e prazeroso do mundo. Livre das grades graças a um “rábula” gratuito — tem, realmente rabo —, analfabeto, mas assim mesmo extremamente eficaz — o “doutor espermatozóide”. 

Ronald Biggs, um inglês simpático, participante do milionário “roubo do trem pagador”, de 1963, foi um dos casos. Após cumprir alguns meses de cadeia no Reino Unido, pulou o muro e fugiu para a Austrália. Certamente por não se sentir seguro naquele país, que mantém fortes vínculos com a Inglaterra, acabou fixando-se no Brasil após saber que aqui havia algumas “benevolências” legais bem adequadas ao seu caso. Envolveu-se sentimentalmente com uma dançarina de bons sentimentos, engravidou-a e com isso garantiu sua permanência no país.  A justiça inglesa tentou extraditá-lo mas como o filho de Biggs era seu dependente (claro...),  e não havia um tratado de extradição entre os dois países — o velho problema das soberanias... —, o fugitivo continuou por aqui tanto quanto quis. Livre e — conforme o Wikipedia da internet —, cobrando sessenta dólares de quem quisesse almoçar e bater um papo com a celebridade. Segundo informação do foragido, sua parte no roubo estava reduzida a quantia mínima, tais as despesas com advogados e outros gastos relacionados com sua luta para não retornar à prisão. Quando, porém, a saudade da pátria se tornou insuportável, voltou à Inglaterra e acabou encarcerado. Velho, doente, alquebrado, fotos suas despertavam compaixão nas pessoas mais sensíveis e inclinadas ao perdão. 

O interessante — alguém precisar escrever uma tese acadêmica sobre esse fenômeno sociológico — é que boa parte da sociedade, principalmente a carioca, até mesmo o bajulava, considerando sua simpatia pessoal e audácia por haver participado de um roubo cujo valor, atualizado, chega a mais de cem milhões de reais. O “sucesso”, em qualquer de suas formas — política, econômica, esportiva, artística ou “simpaticamente criminosa” — legitima qualquer ato. No Primeiro Mundo, artistas de cinema, para reforçar a fama de “durões”, gostavam de serem vistos, em restaurantes e shows, na companhia de mafiosos de alto coturno. O requinte de acrescentar, ao status, o frisson do vago perigo — no caso vaguíssimo. Isso ocorria com Frank Sinatra, Alain Delon e outros incendiários de corações femininos. Um político inglês de ficção, sentindo-se um tanto chantageado por seu interlocutor, mencionou, querendo impressionar, que tinha relações “nas altas esferas”. Ao que o outro respondeu, seguro, que também tinha relações, mas “nas baixas esferas”. Algo bem mais intimidante, porque o mal pode ser infligido com a força e velocidade do raio, sem peias burocráticas e jurídicas. 

O que foi dito sobre extradição apenas mostra, em breve resumo, que na difícil harmonização das soberanias, o crime fica muitas vezes impune, ou quase isso. O que não aconteceria, pelo menos em tese, com uma federação mundial, com jurisdição em todo o planeta. 

Outro exemplo de favorecimento da impunidade está na lentidão com que a acusação estatal é derrotada ou atrasada quando tenta reaver verbas vultosas depositadas no Exterior. Como o dinheiro pode, em segundos, mudar de banco e de país, com um simples clicar no computador, o esforçado promotor de justiça quase sempre chega atrasado no seu pedido de congelamento de depósitos feitos por aproveitadores do dinheiro público. Enquanto o promotor estuda — lutando com a língua que não conhece bem — a legislação bancária do país onde está o dinheiro e redige o pedido de retorno de verbas, o dinheiro já foi enviado para outro banco, em outro país. E aí começa tudo de novo. Mesmo o credor privado do devedor milionário que tem recursos espalhados no mundo não consegue cobrar, por vezes nem mesmo citar o grande devedor, tornando-se seu crédito — mesmo transitado em julgado — uma bonita cifra sem significado real. 

Extradições sofrem a influência do prestígio internacional dos países envolvidos. No caso dos canadenses que foram presos e condenado pelo seqüestro de um famoso empresário de São Paulo, o governo canadense conseguiu que os condenados fossem repatriados para cumprimento da pena no país deles, com conseqüências provavelmente benevolentes. Se, porém, um grupo de brasileiros for preso, no Canadá ou nos EUA, após realizar seqüestros, é altamente provável que o governo brasileiro não consiga a extradição. Com Bush, certamente não conseguirá. 

Mesmo homicídios horrendos acabam quase impunes em razão desse “excesso” de soberania, cada país vivendo em um mundo isolado, apenas seu — pura esquizofrenia política. 

Veja-se o caso do japonês Issei Sagawa, de 1981, que, em Paris, matou, “estuprou” ­— na verdade, tecnicamente, “violou o cadáver” — uma bonita e vistosa estudante holandesa, sua colega, na Université Censier, de Paris. Fez isso porque a holandesa — que o ajudava nas traduções naquele momento, no studio dele —, recusou suas propostas cheias de paixão e de libido. Issei, que tem a aparência de um anão mais desenvolvido, cabeçudo — vi uma foto dele —, media 1,48 m e pesava 44 quilos, certamente menos que a holandesa. Esta, vendo no oriental apenas um colega, mandou que ele se concentrasse no trabalho que estavam fazendo. O japonês se levantou, pegou um rifle calibre 0.22 que estava num armário, atrás da moça, e disparou um tiro na nuca da estudante. Em seguida fez amor com o cadáver e depois cortou seus lábios, nariz, seios e partes pudendas, guardando-as no “freeze’ da geladeira para consumo futuro. E realmente comeu boa parte dessa carne até ser preso. Ele tinha essa estranha compulsão, ligando o ato sexual ao ato de comer. O caso é descrito resumidamente no livro do escritor canadense Max Haines, no “Book V” de sua série de “True Crime Stories”. O relato está na página 121, no capítulo “Fantasies Turn to Cannibalism”. Pena que essa série não tenha sido traduzida para o português.

 O réu, após esquartejar o cadáver, colocou os pedaços em duas malas, que transportou de táxi. Pretendia jogar a carga macabra em um lago ou rio próximo. Na rua, dispensado o táxi, notou que as pessoas olhavam com desconfiança aquele japonês pequeno arrastando duas malas pesadas demais para ele. Assustado, abandonou os volumes na calçada, pensando não haver prova de sua vinculação com o homicídio. Com o passar das horas, o sangue das malas começou a escorrer pelas frestas, despertando suspeita e exame do conteúdo. A polícia só chegou a ele porque o motorista do táxi, lendo as manchetes dos jornais, lembrou-se do estranho oriental e tomou a iniciativa de procurar as autoridades. 

Reunidas as provas irretorquíveis contra ele — encontradas em seu pequeno apartamento, principalmente na geladeira —, Issei confessou o crime mas foi considerado irresponsável, louco, não obstante ser homem culto e inteligente. Era fluente em alemão e francês. Estava na França para um doutorado sobre a influência japonesa na literatura francesa. O juiz determinou sua internação em uma instituição psiquiátrica. 

Issei era filho de um rico industrial japonês. Passados três anos de manicômio seu pai conseguiu que fosse extraditado para o Japão, sob condição de ficar confinado em um sanatório para doentes mentais. A proximidade da família seria útil para seu “tratamento”. Decorridos, porém, 15 meses de internação foi dispensado. Os médicos nipônicos concluíram que ele era normal. A França nada pôde fazer porque cada país tem sua soberania. E, afinal, o que é “ser louco?” 

Após sua liberação — diz Max Haines —,  Issei Sagawa escreveu diversos livros sobre seu assunto favorito — o canibalismo. “Um saber de experiência feito”, como diria Camões. A família da vítima holandesa — cujo nome não menciono aqui por respeito à dor alheia — não deve ter boa opinião nem sobre a seriedade da Psiquiatria, nem sobre os bastidores dessa pomposa palavra, geralmente pronunciada com a boca cheia de ignorância inflada: soberania. 

Por outro lado, a família de Issei deve ter pensado que todo homem merece uma segunda chance. Afinal, o oriental passou quatro anos e meio em manicômios, embora sendo “normal”, segundo os psiquiatras de seu país. Certamente, haverá quem pense que Issei foi enlouquecido pela paixão rejeitada. Já disse alguém que “O homem é fogo e a mulher, estopa. Vem o diabo e sopra.”

 Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
                   oripec@terra.com.br

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Publicado em 04.12.2006

terça-feira, 4 de abril de 2023

Em defesa de Sérgio Moro e da Lava Jato

Foto divulgação 

Em 05/03/2021 publiquei no meu blog um artigo sobre Sérgio Moro com o título de “A Lava Jato, de Moro, será mais valorizada se mundial”.

A tese central do artigo é sobre a prevalência — em casos complexos — da verdade, da justiça concreta, individual, sobre a justiça formal — justiça apenas aparente, manipulável, funcionando o juiz como um robô, sem poder também procurar esclarecimentos, para comprovar que decidiu bem, isto é, com provas nos autos. Essa liberdade judicial pode ser exercida beneficiando acusação ou defesa. É sabido, por exemplo, que um preso, já condenado a muitos anos de cadeia, “confesse” que matou outro preso, em troca de uma remuneração.

Como a legislação não tem a mesma velocidade e astúcia do crime — que nada respeita — é preciso que o juiz criminal, opte por uma justiça verdadeira, com direito de também solicitar provas, não dependendo apenas do promotor e dos advogados.

Transcrevo, abaixo, o referido artigo que continua atual, neste momento em que o crime organizado da inícios confiáveis de que pretende a eliminação física de um grande ex-magistrado, agora senador.

Leiam, abaixo, o referido texto.  

            “A visão do estado social não admite a posição passiva e conformista do juiz, pautada por princípios essencialmente individualistas. O processo não é um jogo, em que pode vencer o mais poderoso ou o mais astucioso, mas um instrumento de justiça, pelo qual se pretende encontrar o verdadeiro titular do direito. (…) Nesse quadro, não é possível imaginar um juiz inerte, passivo, refém das partes. Não pode ele ser visto como mero espectador de um duelo judicial de interesse exclusivo dos contendores. Se o objetivo da atividade jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico, para o atingimento da paz social, o juiz deve desenvolver
todos os esforços para alcançá-lo. Somente assim a jurisdição atingirá seu escopo social”
(Ada Pelegrini Grinover, citada por um jurista, em artigo na internet,
cujo nome não anotei no momento, não conseguindo aqui mencionar).

Todos os povos, com um mínimo de civilização, gostariam que seus respectivos governantes fossem incorruptíveis no manejo do dinheiro público. Esse desejo generalizado de honestidade independe da ideologia dominante no país. Nações capitalistas, socialistas, mistas e até nazistas — ou assemelhadas —, toleram tudo, exceto a desonestidade de seus líderes.

Na China comunista, até poucos anos atrás, mesmo altos membros do partido único, ou influentes empresários, quando culpados de corrupção eram condenados à pena de morte e executados com um tiro na nuca, em estádio de futebol. Um ex-presidente da Huarong Asset Management, Lai Xiaomin — empresa estatal especializada na gestão de ativos financeiros —, que se apropriou de 277 milhões de dólares, em dez anos, de 2008 a 2018, foi condenado à morte por corrupção e bigamia. Seus bens também foram confiscados. Confiram na internet. E o “custo” da execução, a bala, ainda era cobrado da família.

Detalhe de humor negro, a cobrança da bala, mas que simboliza uma advertência, curta e grossa, para gênios e analfabetos, de que “se você roubar, você morre!”, dirigida a todos os cidadãos, “os de cima e os de baixo”. Como a imagem — o fuzilamento —, ao vivo, é mais persuasiva que centenas de páginas, escritas ou faladas, isso deve ter contribuído para conter, pelo medo, milhares de cidadãos tentados pela possibilidade de enriquecer ilicitamente trabalhando no governo, onde é mais fácil roubar porque o dinheiro, em impressionante volume, está mais acessível, sem vigilância externa.

Atualmente a pena de morte para casos de corrupção, na China, diminuiu devido a pressão internacional, mas o rigor continua, embora sem tiro na nuca. Isso porque o povo chinês, como os demais povos, na sua imensa maioria, aprova tal severidade, e nenhum governo despreza o apoio popular. O medo, em tese uma emoção negativa, pode, conforme o contexto, ser imensamente virtuoso, daí meu apoio ao esforço de Sérgio Moro, doravante no plano internacional.

Sua expertise no combate à corrupção sofisticada será melhor compreendida e praticada em outras nações. Seu sacrifício pessoal não pode ser desperdiçado. A corrupção perdeu a primeira batalha, no Brasil, mas ainda tem a esperança de ganhar a guerra, com ajuda da bandidagem dos hackers e partidarização de parte da cúpula do poder judiciário. 

Diz a mídia que Xi Jinping, o atual presidente chinês, já puniu mais de um milhão de funcionários públicos. A severidade na proteção ao bem público — seja por inata honestidade do governante, seja por cálculo político — gera confiança e lealdade. O fato objetivo é que sem demonstração de honestidade pessoal todo líder, de qualquer pais, acaba perdendo o poder. Vejamos, sinteticamente, alguns exemplos.

Hitler, foi um ditador brutal e assumido mas não considerado ladrão. Stálin, camarada perverso, tinha hábitos simples, sem luxo, interessado “apenas” em implantar, progressivamente, uma ditadura mundial do proletariado, começando pela Rússia. Mandava matar opositores, mas, pelo que se sabe, não guardava dinheiro no exterior (talvez porque não precisasse; tinha de tudo, e jamais pensou em deixar o poder). Seu antecessor, Lênin, também não ligava para o dinheiro. O mesmo se diga do chinês Mao Tsé Tung, que para implantar o comunismo em seu país não hesitou em matar dezenas de milhares de “desobedientes”, usando a fome ou o fuzilamento. Todos os ditadores acima mencionados tinham seus defeitos, mas não roubavam o próprio país.

Alguém pode imaginar Hitler, Lênin, Stálin, Mao sendo fotografados carregando dólares ou diamantes na cueca? Impossível. Uma desmoralização inaceitável. Eram “grandes”, no estilo deles, brutal, mas não furtavam e por isso foram apoiados pela maioria de seus povos. No Brasil, Getúlio Vargas foi um ditador, em certo período, mas nunca ladrão. O mesmo ocorreu com nossos presidentes militares, todos, na minha opinião, pessoalmente honestos, nos vinte anos de exceção.  

Insistindo: à vasta maioria dos homens e mulheres, do mundo inteiro, interessa vivamente que seus governantes não roubem nem deixem roubar. Daí a necessidade de uma nova estratégia, agora mais extensa, global — “dura”, juridicamente discutível, mas inevitável se realmente queremos sucesso na luta contra o crime do colarinho branco: a “delação premiada”.

Sem essa “delação”, ou “colaboração premiada”, utilizada na Operação Lava Jato, liderada por Sérgio Moro, o Brasil continuaria como um país com dois tipos de justiça: a rotineira, “Genérica”, do povão — de investigação rudimentar —, e a “Privilegiada” — de investigação policial complexa, demorada, exigindo conhecimentos de informática, telefonia, escutas legais e ilegais, hackers, variadas legislações tributárias e bancárias, no próprio país e em diferentes partes do mundo, notadamente nos Paraísos Fiscais. 

Sem a necessária ousadia inovadora dos integrantes da Lava Jato, coordenada pioneiramente por Sérgio Moro, o Brasil continuaria “enxugando gelo”: a polícia tentando obter um flagrante do infrator subalterno mas sem poder chegar ao topo, o “cabeça” do esquema de desvio, geralmente oculto, respeitado e blindado por competentes advogados. Em suma, antes de Sérgio Moro a polícia podia avançar até um certo nível de conhecimento da fraude, digamos 50% — o suficiente apenas para saber que “aqui há crime!” — mas incapaz de chegar aos detalhes, com prova documental, oral, e informática, possibilitando uma denúncia precisa e uma condenação judicial difícil de reformar. A investigação policial, quando sem apoio judicial, era dificultada porque, ao contrário do juiz, o delegado não goza do direito de inamovibilidade. Se estiver incomodando um figurão o policial pode ser removido para outra cidade. 

Claro que a cooperação das polícias, entre os países, já existe na luta contra o tráfico internacional de drogas, prostituição, trabalho escravo e outras formas de combater o crime organizado, mas pouco se podia fazer, antes de Sérgio Moro, em casos de lavagem de dinheiro, caixa dois, evasão de divisas, em que a prova está espalhada no mundo. Se a ONU — ou outra entidade assemelhada, criada com apoio de grande número de países — facilitar o acesso, regrado, às instituições financeiras dos países signatários — nos casos do colarinho branco e crime organizado — é o que propomos aqui —, já não seria tão necessário prender preventivamente o suspeito, por tempo mais longo, a não ser para impedir sua fuga. Haveria enorme diminuição da burocracia legal e judicial para verificar os depósitos e transferências do dinheiro ilegal entre países e paraísos fiscais. 

 Os infratores, antes da Lava Jato, sentiam-se praticamente impunes por saberem o quanto é difícil comprovar, em juízo, tais crimes. O butim pode estar escondido em malas, cuecas, empresas lícitas e de fachada, e instituições financeiras internacionais, com seus depositantes protegidos pelo sigilo bancário. 

Falei em delação premiada, dizendo-a essencial para a repressão ao desvio de grandes somas, mas há um problema com ela: uma suscetibilidade excessiva protegendo pessoas importantes quando acusadas de desvios milionários.  Muitos operadores do direito não gostam ou temem melindrá-los, esquecidos de que — triste realidade —, sem alguma pressão psicológica e desconforto, o infrator não confessa. Nem ao delegado, nem ao promotor, nem ao juiz, nem ao padre e nem a Deus — com Este o infrator apenas evita o assunto. Sem alguma pressão, medo ou constrangimento — que não se confundem com a verdadeira tortura, a física —, o investigado também não indica quem são seus cúmplices. Seria uma deslealdade perigosa, no “código de ética marginal”. Nos E.U.A. o delator é chamado de “rato”, merecendo ser pisado ou temperado com chumbo.

Daí a necessidade real, na Lava Jato, da polícia investigar — sem alarde —, até onde for possível fazer isso sozinha e depois, para completar a investigação, pedir a um juiz a prisão provisória, ou cautelar, sem pré-aviso, dos investigados —  porque só eles mesmos podem informar os detalhes indispensáveis ao êxito de uma ação penal eficaz: nomes completos dos cúmplices, laranjas, doleiros, bancos, agências,  contas correntes, países, valores exatos, datas e outros detalhes indispensáveis a uma denúncia apoiada em inquérito bem feito e confirmável em juízo.

Nessa corrente de participantes nenhum “elo” pode faltar, como recomenda a tática de “siga o dinheiro”. Daí, insista-se, a necessidade de prender provisoriamente o investigado —, de surpresa —, porque se intimado com dias de antecedência, para comparecer à delegacia, ele, sabendo-se culpado, imediatamente procurará um criminalista que — por dever profissional — lhe dirá o que fazer, conforme a situação: fugir, calar, destruir provas, avisar os cúmplices, transferir recursos de um banco para outro, etc. A legislação brasileira permite as prisões cautelares porque sem elas, nos crimes mais complexos, fazer justiça seria uma raridade, perpetuando a já mencionada “dupla justiça”, a dos ricos e a dos pobres.

Há quem diga — emocionado, quase às lágrimas — que prender alguém, provisoriamente, sem aviso prévio, com possibilidade de prorrogação da detenção, é uma “tortura”, principalmente se o preso for idoso.

Quem considera “tortura” a prisão temporária prorrogável vive no mundo da lua ou é amigo fiel do “torturado”. Esquece que o dinheiro, geralmente polpudo, obtido com o furto do dinheiro público, matou ou prejudicou grande número de velhos, moços e crianças das classes menos favorecidas, que vivem em condições precárias. Mal educados, mal alimentados, mal tudo, porque foram privados da riqueza subtraído pelo “torturado” idoso incapaz de controlar a própria ganância. Por que tanto carinho com quem agiu mal, apesar de velho?

Todo crime, ou ilegalidade, pressupõe risco. Quando dá certo é só felicidade, mas quando dá errado, há que aceitar a consequência de um grande desconforto, ou um sofrimento que é apenas moral. O detido não foi torturado. Não passou fome, nem frio, nem privação de sono, nem sofreu agressão física. Na maioria dos casos de prisão cautelar longa houve depois o julgamento e a condenação, com provas e até confissão explícita, havendo recuperação de bilhões de dinheiro governo. Prova de que a sistema funcionou, atingiu seu objetivo: condenar culpados. 

É conhecida a genérica frase “os canalhas também envelhecem”, mas concedo que nem todo investigado merece essa vil classificação. Alguns poucos suspeitos talvez não estivessem completamente informados da realidade, quando convidados a participar de alguns negócio ou operação. Mas, descoberto o esquema desonesto, seus nomes figuravam em longas listas de infratores e por isso precisavam ser detidos, na busca da verdade. Não é possível deixar de investigar com base no rosto de bondade e prestígio social de um cidadão.

Às mentes dolosas interessa convidar algumas pessoas honestas, prestigiadas, para dar um ar de respeitabilidade aos empreendimentos desonestos. Tais vítimas — paradoxalmente vítimas por serem honestas demais — podem entrar em depressão, e até cometerem suicídio, não suportando a humilhação. Esse é um risco, raro e lamentável mas não invalida o que foi mencionado neste artigo: a necessidade de prisão provisória para chegar ao fundo de uma trama que sem a prisão, significaria impunidade. Nenhum sistema judicial, no mundo, está blindado contra a eventualidade de uma acusação equivocada. Lembre-se que há muito mais criminosos não punidos, por falta de prova, do que inocentes condenados. Quando isto ocorre, a mídia não deixa passar em branco, pela sua raridade. Mosca branca.

Não sei como são feitas, na prática, os interrogatórios feitos nas prisões provisórias e preventivas, mas presumo que só serão plenamente úteis se o investigado responder às perguntas desacompanhado. Se seu advogado for de temperamento agressivo, exaltado, interessado em tumultuar — protestando e interrompendo constantemente o diálogo entre quem pergunta e quem responde — esse trabalho torna-se inútil.

Presumo que, no geral, há uma espécie de jogo de pôquer, nessas inquirições, em que o delegado ou o promotor talvez aparente saber mais do que realmente sabe sobre a conduta ilegal do investigado mas não quer “mostrar suas cartas antes do tempo”.  Essa incerteza agonia o infrator, limita sua liberdade de inventar o que não existe. Por sua vez o investigado tenta, ao máximo, aparentar uma inocência inexistente. Nesse joguinho de astúcias o delegado ou promotor leva vantagem porque não trabalha com medo, sob pressão. Não precisa, nem pode, mentir, inventar fatos inexistentes — dizendo, por exemplo, que todos os asseclas já confessaram, quando isso não ocorreu. Só tem que perguntar e duvidar, insistindo nos detalhes, mostrando as contradições do infrator. É um trabalho relativamente tranquilo, cômodo. Busca apenas a verdade.

O investigado, porém — quando culpado —, depõe angustiado, suado, tendo que inventar, de improviso, e depois lembrar-se de como mentiu, para não se contradizer. Sente medo ser condenado, desmoralizado, perdendo tudo — liberdade, posições, riqueza, convívio familiar. E não adianta permanecer mudo, sabendo que, por isso, ficará ainda mais tempo detido. Exausto, torna-se propenso a dizer a verdade, mesmo contra a opinião de seu advogado. Pensa nas vantagens da delação premiada. Não perderá tudo, e talvez fique em casa, com tornozeleira eletrônica.

Lembro-me que poucos anos atrás, quando assistia, na televisão, os julgamento dos crimes do colarinho branco, cheguei a escrever, em artigo, que como havia uma certa corrupção generalizada, tradicional —  “quando em Roma, como os romanos”—  e havia, como ainda há, uma enorme ganância fiscal brasileira, estimulando a ilicitude como uma “defesa” compreensível do contribuinte espoliado — seria mais equânime que, nesses casos, seria  razoável que, descoberta a fraude, o réu apenas devolvesse o que sonegou, evitando a prisão.

 Com o passar do tempo, mudei meu entendimento porque essa brandura estimularia a desonestidade. O cidadão inescrupuloso pensaria assim: — “Vou roubar, ou sonegar o máximo que puder. Se não descoberto, enriqueço ou multiplico minha riqueza. Se descoberto, e condenado — o que será difícil porque a prova é complicada —, devolvo o que desviei, sem prisão. Vale a pena ser esperto, precisando apenas coragem”.

Como este artigo já está longo demais, não há necessidade de detalhamento do trabalho do juiz da Lava Jato porque a mídia, no Brasil e no Exterior, já publicou o suficiente a sobre o juiz Moro, modesto, trabalhador, paciente, honesto, homem de família e imensamente corajoso. Há também livros sobre ele.

 Poucos dias atrás, li, em e-Book, sua biografia, “Os dias mais intensos”, escrito por sua esposa, Rosângela Moro. Alguém dirá que biografia escrita por esposa é sempre suspeita, parcial. Nem sempre. Quando o leitor acompanha, quase diariamente, na mídia, tudo o que é publicado —, pró e contra o biografado —, dá para saber se o biógrafo mais recente diz ou não a verdade. Todos os fatos relatados no referido livro enquadram-se, harmonizam-se, com o que já eu sabia sobre a personalidade do agora ex-juiz. 

Por razão que não interessa aqui detalhar — também de conhecimento geral — a convivência entre o magistrado e o presidente não deu certo. Azar de três: do juiz, do presidente e do país. Não podendo voltar ao cargo de juiz, porque pediu demissão, ficou desempregado. E aí? Como Sérgio Moro ganharia a vida? Advogando na área criminal, sua especialidade?

 Não teria sentido ele montar uma banca de advogado criminalista tendo como missão defender grandes infratores da lei, logo ele, que sempre combateu os infratores. Além disso, terminada a quarentena, ficou sem proteção policial, com dezenas de réus poderosos, ricos, condenados por ele — presos ou soltos —, querendo e podendo se vingar com quase total impunidade porque não é difícil encomendar um falso “latrocínio” em que o matador nem sabe quem foi o mandante.

Daí a necessidade ou extrema conveniência de sair do país, o que certamente fará. O que foi dito acima tenta lembrar que Sérgio Moro é um idealista e por isso a Organização das Nações Unidas, ou entidade de propósitos assemelhados, tem quase uma obrigação moral de aproveitá-lo para a uma missão que é desejada não por tal ou qual nação, mas por todas elas, adeptas da honestidade. 

O presente artigo foi redigido em estilo coloquial, para o leitor comum, sem formação jurídica, embora possa ou deva ser lido também por juízes, promotores e advogados da área não penal. Ficarei honrado se isso ocorrer. Observo que o texto, inicialmente, tinha três vezes a extensão aqui presente, o que provocaria uma debandada de leitores apavorados, não dispostos a prolongar o sacrifício. É o dilema da comunicação eletrônica: não se pode dizer tudo. E se fatiado o “monstro”, nem a primeira fatia será consumida por inteiro.

(22/02/2021)

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

oripec@terra.com.br
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sábado, 21 de janeiro de 2023

EXPLOSÃO NO VENTRE DO MACGYVER

 


Foto divulgação 

            Soube, dias atrás, através de um jornalista de crimes — sempre exagerando nas descrições —, que o MacGyver faleceu, vítima de uma explosão que lhe “dilacerou o ventre, espalhando suas poderosas tripas”. Quem me contou isso não resistiu à imitação da contundência dos roteiristas de filmes policiais americanos. Acrescentou ainda que “os intestinos dele foram recolhidos às colheradas”. Imagem forte, despertando imediato interesse dos leitores, pois vem sendo repetida com alguma frequência na fala dos endurecidos policiais cinematográficos de Los Angeles, Chicago e Nova Iorque. Ou onde quer que rechonchudos mantenedores da lei — bebendo café em canecas e comendo rosquinhas — troquem piadas cínicas sobre os pedaços das vítimas estraçalhadas. A explosão ainda feriu um médico cirurgião, bem como uma enfermeira. É possível que ela venha a ficar cega.

            A junção do nome à referida explosão leva qualquer leitor a pensar imediatamente em terrorismo. Seria esse MacGyver algum irlandês revoltado com o domínio inglês sobre a Irlanda do Norte? O artefato teria detonado no momento errado, quando manipulado no colo? Era para ser disfarçadamente “esquecido” dentro de uma sacola em um aeroporto?

            Mais. Se o leitor ainda for informado de que nosso homem, quando bem jovem, era conhecido, dentro da sua turminha, pela alcunha de “Maçarico”, a conclusão lógica é a de que ele, além de um tremendo terrorista, “detonador” de bombas, era também um ardiloso arrombador de cofres-fortes. Enfim, um homem execrável.

            Sirva este relato como advertência pedagógica contra a fácil tendência humana de formar juízos distorcidos pela imaginação que, como um cavalo doido, desembesta pelo mundo, relinchando estórias sem conexão com a realidade. É um relato — desculpe a falta de modéstia —, que deveria ser imposto como leitura obrigatória a todos os juízes em início de carreira, obrigados que são a julgar seus semelhantes com provas indiciárias e depoimentos de falíveis testemunhas.

     Para começar, esse MacGyver não era irlandês, nem escocês, nem americano. Era brasileiro, cearense. “MacGyver” era apenas seu apelido, recebido logo que surgiu na televisão, na década de 1980, um seriado — “Profissão Perigo” — em que o personagem principal inventava saídas geniais, mecânicas ou elétricas, para qualquer tipo de dificuldade criada pelas forças do mal. O simpático e ruivo herói da televisão está, mero exemplo, amarrado a uma cadeira. Pode movimentar apenas o dedão do pé, aproveitando o buraco de um tiro no sapato, enquanto, ao seu lado, o tique-taque angustiado de uma bomba-relógio cochicha que a coisa vai explodir em cinco minutos. O recinto, por sua vez, está impregnado de gases letais. Mas, de repente, olhando para o chão, o imaginativo agente da lei vê, digamos, um prego, um arame e uma porca — de metal, claro. Mesmo que fosse de carne, a porca na certa teria serventia. Genial, com um Q.I. improvisador inimaginável, o herói do seriado logo arquitetaria uma combinação engenhosa de prego, arame e porca. Esta, sendo eventualmente um animal, é induzida a roer a corda que prende seu tornozelo — o dele, MacGyver —, após o que ela recua até que seu gordo traseiro funcione como uma tampa, interrompendo a saída do gás venenoso. Então, agarrando o arame com o dedão liberado, o herói mexerá no ponto certo do artefato, desarmando a bomba segundos antes de explodir. Tudo sem muita pancadaria porque a marca registrada do simpático herói era a inteligência.

            Nosso “MacGyver” cearense não chegava ao ponto de se igualar ao homônimo do seriado — não promovido, nunca teve o convite de um diretor de cinema —, mas foi sua propensão para as invenções e “saídas” inesperadas que gerou o apelido entre a rapaziada. Além disso, tinha o cabelo avermelhado — resultado da sensualidade holandesa por cima de nossas índias mais bonitas — não sendo de estatura muito mais baixa que seu original americano. Era também muito brincalhão.

            Que o nosso “MacGyver” cearense, tinha uma mente fértil, ninguém pode negar. Bastariam dois ou três exemplos para ilustrar os recursos inesperados de sua imaginação.

            Quando na faixa dos vinte nosso biografado passou vários meses na Alemanha. Foi lá com a cara e a coragem. Era maluco por alemãs doidonas e conhecia um pouco a língua local. Se desembarcou na pátria de Goethe com algum dinheiro, seriam no máximo uns duzentos dólares. Voou aproveitando o preço da “baixíssima temporada” — mais baixa seria impossível —, utilizando diversas rotas, dormindo horas e horas nos aeroportos, enquanto esperava o embarque para o voo seguinte. Dava como certo que, com sua engenhosidade natural, conseguiria trabalhar, mesmo com a polícia da imigração vigiando. No seu caso, não haveria tanto perigo porque seu cabelo ruivo despistava a origem sul-americana. Poderia passar por alemão, antes de falar.

            Ocorre que, como é sabido, uma coisa é viajar como turista; outra, como imigrante. Sabe-se que os empresários locais tiram proveito do medo que acossa o trabalhador irregular. Pagam bem menos. E nosso amigo, se se livrou da fome, não conseguia se defender do desgraçado inverno alemão.

            Como tudo é pago na Europa, o aquecimento de seu quarto dependia da inserção de uma moeda em determinado aparelho de aquecimento, que não posso aqui bem descrever porque não o vi, sabendo do caso pelo próprio MacGyiver. O fato é que, com a moeda introduzida na fenda, o quarto esquentava. Se não, o frio congelante penetrava nos seus ossos, roendo-os, chupando e dando risadinhas sádicas.

            Ocorre que, certa noite de sexta-feira, o MacGyver, acompanhado de uma garota meio taradona, gastou, entre bar e hotel, muito além da conta, voltando para casa praticamente sem tostão. E só receberia seu parco salário dias depois, não havendo a mais remota possibilidade de um adiantamento. Assim, em pleno mês de janeiro, num dos invernos mais rigorosos da década, com registro de várias mortes, mesmo em ambientes fechados, viu-se no terrível dilema de, ou gastar as últimas moedas comendo — mas congelando-se em seguida —, ou se aquecendo — mas depois perecendo de fome. E o frio era duplamente torturante porque, nos últimos dias, nosso cearense não parava de pensar nas cálidas areias da praia de Iracema na saudosa Fortaleza de seu Ceará.

            Passar dois dias no quentinho, mas em jejum, seria exigir demais, mesmo porque seu apetite era excelente, apesar de magro. Mas como vencer o frio? Usar jornais entre dois cobertores era uma boa ajuda, mas insuficiente, porque o frio parecia congelar até as notícias. Se os jornais lhe permitiam escapar da morte, não conseguiam vencer a insônia. O mero ato de dormir exige algum conforto. O sujeito só dorme, no extremo frio, quando já está morrendo.

            Aí o MacGyver resolveu utilizar sua veia inventiva, que alguns anos depois acabou virando profissão. Levantou-se da cama, envolto no cobertor, os dentes batendo como castanholas, e passou a estudar o aquecedor. Como o estudo demorasse, ele, para se aquecer — talvez por sugestão do som das castanholas de seus dentes —, sapateou um pouco, erguendo os braços como um dançarino de flamenco, lembrando-se de uma fogosa espanhola de pernas cabeludas, perita nessa dança, com quem tivera um caso rápido um mês antes. Pensando nela terminou o artístico aquecimento com um grito de “Olé!” — inexplicável como tantas outras coisas em sua vida.

            Após várias espiadas e reflexões em frente do aparelho, descobriu que talvez tivesse encontrado a solução para seu problema. Teria que ser algo que não envolvesse um risco muito alto de processo criminal — como seria o caso se arrombasse o aparelho. Cadeia, mesmo em Primeiro Mundo, faz mal à alma e ao casto traseiro, como era o seu. Pensou ainda que, se introduzisse na fenda um objeto semelhante a uma moeda — um disco de lata, por exemplo —, “enganando” a engenhoca com seu formato e peso — o aquecedor talvez até funcionasse porque, falta-lhe, por enquanto, a malandra inteligência humana. Mas o funcionário da empresa que explora tais aparelhos, quando fosse recolher as moedas, encontraria o objeto do crime. E aí ele, MacGyver, entraria em cana pela falcatrua.

            Teria, portanto, que inventar uma “moeda” que “se evaporasse” depois de acionado o mecanismo. Desaparecendo a “moeda”, o funcionário pensaria que se tratava apenas de um defeito da máquina. Assim, pensando, pensando e repensando, agora deitado de costas — sua posição preferida para solucionar problemas — descobriu a chave do enigma.

            Levantou-se novamente e pôs-se a examinar as diversas tampinhas de garrafas de refrigerantes e outras bebidas que havia em cima da mesa de seu quarto. Escolheu uma delas, pelo formato e tamanho, e a encheu de água. Após, com extremo cuidado, colocou a tampinha do lado de fora do batente da janela, esperando que a água congelasse. E como a temperatura era baixíssima, não demorou muito para que o líquido se transformasse em gelo em formato de moeda. Torcendo para que desse certo, porque o frio estava de rachar, MacGyver introduziu o disquinho de gelo na fenda do aparelho, ato que imediatamente provocou seu funcionamento.

            Foi uma descoberta e tanto, permitindo que nosso amigo passasse um fim de semana bem mais confortável e sem jejum. Mas, como sempre, as pessoas tendem a abusar das soluções fáceis. Aqueceu o quarto durante algumas semanas, sem gastar uma única moeda. Chegou a esquecer que ali, ao contrário do Ceará, o calor era pago.

            Até que a casa caiu. Um dia, ao chegar do trabalho, estava sendo esperado por dois funcionários da empresa que explorava os tais aquecedores. E uma viatura policial, com dois agentes, estava estacionada em frente, junto à calçada, como que aguardando uma decisão.

            — “Estou frito!” — deduziu o MacGyver. Mas a coisa não terminou tão drasticamente como ele imaginara.

            Um dos homens à paisana, muito seguro de si, não perdeu tempo com amabilidades. Sem sequer lhe apertar a mão, foi logo dizendo:

            — Nós sabemos que você está utilizando o aparelho... Não adianta negar... O que nós não sabemos é que técnica você usa. Já imaginamos tudo que é possível imaginar mas não conseguimos descobrir o artifício. Não há sinais de arrombamento ou coisa parecida... Trabalhamos no setor técnico da empresa e nosso papel é corrigir qualquer falha que permita aos usuários o uso de algum truque, como aquele que você está utilizando. Se você nos disser como consegue fazer a máquina funcionar sem usar moedas, não será preso. Somos engenheiros. Modificaremos o aparelho para que ninguém possa repetir a manobra. Se não quiser contar o segredo será detido agora mesmo e levado à Delegacia. O que decide?

            Não havia muito o que escolher. Revelou o truque, o que provocou uma expressão de espanto no técnico, que ficou de boca aberta.
                       O alemão cumpriu a promessa, não levando o assunto formalmente à esfera policial. Mas nosso amigo, por via das dúvidas, no dia seguinte mudou de pensão.

            Um outro fato que explica a origem de seu apelido ocorreu antes de sua ida à Alemanha.

            Um tio dele vinha se queixando de que os frequentadores de bares, perto de sua casa, costumavam à noite “aliviar os rins”, como se diz, num canto do muro, aproveitando a escuridão propiciada por algumas árvores.

            Ocorre que, se a bexiga dos bêbados ficava, com essa prática, aliviada, o mesmo não acontecia com as ventas do tio e muito menos com o da tia, mulherzinha nervosa, azeda, que não parava de infernizar o marido, exigindo que “tomasse logo alguma providência!”.

            Mas que providência tomar? Chamar a polícia? Colocar uma placa dizendo ingenuamente que “É proibido urinar neste local”?

            O MacGyver, ouvindo a queixa, saiu da sala para examinar a área — sempre fedorenta, porque não adiantava lavar semanalmente — e logo encontrou a solução: instalou, no dia seguinte, um fio elétrico, descascado, na junção das duas paredes — no “mictório” de fato, não de direito —, protegendo-o com uma tela, de um modo que não pudesse ser tocado por alguma criança.

            A invenção deu certo. Quando os “aliviadores” devolviam a cerveja metabolizada no cantinho eletrificado, a eletricidade chegava aos mal-educados através do jato, punindo o infrator com um inesquecível choque educativo, pois aplicado em região muito sensível. Como a corrente elétrica era de 110 volts, não havia perigo de morte, mas a “cadeira elétrica genital” fez com que o mau-cheiro local quase desaparecesse. E o tio, prudentemente, jamais disse às vítimas indignadas — ainda ficavam bravos, os porcalhões! — que o choque era proposital.

            Explicada a origem do apelido do MacGyver, cumpre esclarecer as circunstâncias de sua morte. Se não era irlandês, nem terrorista — pergunta-se —, como foi que morreu de uma explosão no ventre?

            Havia realmente — e dizemos isso com toda seriedade científica — um certo mistério biológico relacionado com o aparelho digestivo do nosso amigo, de saudosa memória. Aliás, fatos estranhos podem acontecer em qualquer parte do mundo. No Japão, por exemplo — deu no jornal —, um cidadão ficava literalmente de porre mal acabava de almoçar. E não bebia. Foi preciso uma cirurgia para curar a anomalia. O estômago desse japonês segregava uma química toda peculiar — uma enzima, talvez —, que transformava em álcool, em alguns minutos, os carboidratos ingeridos. Assim, uma simples porção de arroz, por exemplo, transformava-se no equivalente a vários copinhos de saquê. Enfim, o estômago do oriental era uma destilaria viva. Defeito que, felizmente, não pode nem deve ser reproduzido por via cirúrgica porque, caso contrário, não faltaria ansiosa clientela a implorar aos cirurgiões uma conversão estomacal, visando a “ficar igualzinha ao estômago do japonês”. Muita gente dispensaria a compra do saquê no bar da esquina, optando pela produção caseira. Economia até de garrafa e de copos.

            Mas o mistério biológico do MacGyver não estava no estômago propriamente. Estava mais em baixo, nos intestinos.

            Expliquemos sem rodeios: o MacGyver, assim como fermentava de inventividade na cabeça, borbulhava espantosamente na área intestinal — não sei se intestino grosso ou delgado. Algo impressionante, merecedor de monografia em Congresso de Gastroenterologia. Alguma coisa havia na flora — ou fauna, ou que melhor explique o diabo, porque aquilo não podia ser obra de Deus — dos seus tubos intestinais que fazia com que a produção de gases de nosso amigo fosse pelo menos cinco ou dez vezes superior à normal. Cinco ou dez é algo impreciso, reconheço. Mas tais coisas não se medem, apenas se sentem. E talvez houvesse algo genético nessa anomalia porque, não o pai, mas o avô dele era conhecido no sertão alagoano como “Coronel Ventania”. Cognome estranhável numa região conhecida pela suavidade de seu clima e seus ventos. E não se levante a hipótese de que o apelido poderia ter origem em um temperamento turbulento. Todos os que o conheceram afirmavam ser ele um velho sereno, acomodatício, amigo da leitura e que passava o dia sentado em alguma cadeira de balanço com assento de palha trançada, tinha que ser. E era especialmente preocupado com as vias respiratórias das pessoas que viviam sob o seu teto. Por causa disso, mantinha as janelas sempre abertas — dizia que era por causa do calor.

            Mas, dirá o leitor que gosta de exibir sua inteligência: — Tudo bem, mas “Maçarico” implica fogo. E onde está, no caso, o fogo do apelido?

            É um outro ponto em que, para explicar verdadeiramente, necessito ainda mais tolerância, ou até mesmo caridade do refinado leitor. Eu bem gostaria que nosso amigo se notabilizasse por uma outra característica excepcional qualquer, como por exemplo a memória. Ou mesmo algo corporal, como a força muscular. Ou até mesmo algo visceral, vá lá, como, por exemplo, a capacidade de beber muito sem ficar embriagado. Mas os caprichos da natureza são insondáveis e eu me vejo agora hesitante entre a elegância, a compostura, e a necessidade de relatar um fato da vida real que teve consequências na área médica e resultou em morte.

            Fosse ainda vivo o escritor Émile Zola, eu lhe pediria uma mãozinha para redigir o trecho que se segue, pois o velho mestre daria um jeito de conciliar tópicos “baixos” com a alta literatura. Para ele, realismo não era problema. Como não adianta sonhar e não seria justo deixar as coisas pelo meio, vejo-me obrigado a prosseguir sozinho, jurando de pés juntos que não se trata de apelação.

            No caso, a denominação “Maçarico” originou-se de uma infeliz brincadeira feita pelo MacGyver quando ele tinha uns quinze anos. Muito brincalhão, e querendo ganhar uns cobres, fez uma aposta de que “criaria” um jato de fogo igual ao de um maçarico” sem usar nada mais que um palito de fósforo. Seus colegas de escola — uma canalhada esperta que até se deu bem na vida, algo nada estranhável — disseram que aceitariam a aposta mas com a condição de que ele não poderia se limitar a encher a boca com alguma bebida alcoólica, devolvendo-a, em seguida, na chama. Isso seria um truque banal, muito comum em circos do interior.

            MacGyver aceitou a restrição. Acendeu o fósforo, ergueu uma perna e colocou a chama na posição adequada. O jato de fogo — um lança-chamas em miniatura — que emitiu foi de assustar, chamuscando os cabelos de uma mocinha que estava de costas, conversando com uma amiga. Todos esperavam que o dragão largasse fogo pela frente. Assim, ganhou a aposta, mas também um apelido pernicioso que sempre o embaraçava quando era indagado quanto à origem do apelido, “Maçarico”. Seus amigos, ex-colegas perdedores da aposta, gostavam de, em festas e reuniões sociais, induzir as moças a lhe perguntar a origem do apelido. E riam abertamente quando o MacGyver inventava uma mentira inocente para explicar tão estranha ventilação. As moças, vendo as risadas dos amigos, ficavam meio desconcertadas, não entendendo onde estaria a graça na explicação tão banal.

                        Dizem que o inventor nato tem uma mente toda especial. Ele não se interessa muito por saber como são as coisas. Quer saber é como alterar ou substituir essas coisas, de modo a se tornarem mais úteis ou interessantes. Veem sempre mais adiante, certa ou erradamente — alguns são meio amalucados —, e a todo momento nos impressionam pela visão antecipada que têm do mundo. É uma qualidade necessária para a evolução da humanidade, mas oferece também os seus perigos, como aconteceu com o MacGyver.

            Finalmente, o fato principal. Como se explica a explosão que arrebentou os intestinos de nosso pranteado amigo?

            Pode-se dizer que ele foi, paradoxalmente, uma vítima da tecnologia moderna. Se a técnica operatória estivesse mais atrasada, estaria vivo. Explico.

            Durante décadas, os pacientes foram operados com bisturis comuns, de aço, claro. Até que inventaram o tal do bisturi elétrico, que corta melhor e talvez tenha outras utilidades. Mas ele tem uma peculiar desvantagem: pode emitir uma minúscula faísca. MacGyver estava no hospital em razão de uma obstrução intestinal. Se qualquer obstrução normalmente provoca uma retenção de gases, imagine-se esse problema no caso especial do nosso amigo. Esses gases — metano? — são realmente explosivos, desde que surja mínima fagulha.

            Assim ocorreu a tragédia. A faísca do bisturi, no ventre gasificado do paciente explodiu no rosto do cirurgião e da moça que estava bem perto.

            E assim morreu bestamente meu interessante amigo, vítima da invenção de um colega inventor que, eletrificando o bisturi, jamais previu que poderia ferir ou matar um operado e seu cirurgião. E não sei se, afinal, o tumor que causava a obstrução era ou não maligno. A notícia que li no jornal — nem me lembro qual era —, não entrava em detalhes.

            Dirá o leitor mais sisudo que o escritor, eu, não se revelou tão amigo assim do seu amigo MacGyver pois, se o fosse, jamais colocaria no papel passagens tão grotescas.

            Respeito o enfoque, mas fico com a opinião oposta, do próprio morto. Quando em vida, sabendo de minha preferência para buscar na vida real a inspiração para minhas estórias, por duas vezes chegou a dizer que eu tinha plena liberdade para usar as passagens acima em um livro de ficção, desde que mantivesse no anonimato seu verdadeiro nome. Só não me autorizou o relato da explosão porque seria humanamente impossível prever tal coisa. Não sei se houve outros acidentes iguais, mas lembro-me perfeitamente que o jornal também informava que depois dele os hospitais, em casos iguais, de excesso de gases, passaram a aconselhar ou obrigar uso de bisturis não elétricos.

     O MacGyver cearense, quando morreu, não vivia mal, financeiramente, porque inventou e patenteou duas ou três invenções. Perdemos contato durante os últimos vinte anos. Se não tivesse morrido precocemente, teria resolvido vários problemas, porque sua imaginação não era normal. Se quisesse ser um escritor, enriqueceria nossa literatura. Mas nunca demonstrou interesse nesse sentido. Preferia inventar coisas e solucionar dificuldades.

Se existe um céu, o MacGyver deve estar lá, sugerindo alguns truques a São Pedro, ajudando-o a barrar a entrada de alguns pecadores disfarçados em santinhos.

      FIM 

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargador aposentado

oripec@terra.com.br

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